sexta-feira, julho 22, 2022

Imunidade

Até que ponto nos deixamos afogar pela dor? Até que ponto a maldade dos outros nos perturba, nos atinge, nos enfraquece? Até que ponto a vida nos castiga sem termos cometido nenhum crime? Até que ponto a insanidade deste mundo nos adoece? Até que ponto sobrevivemos ao desprezo, ao descaso, ao desamor? Até que ponto a estupidez alheia silencia a nossa voz? Até que ponto o amor, a justiça e a bondade são suficientes para seguir em frente? Qual é o ponto de rutura, o momento da explosão, o segundo em que perdemos a razão? Até quando conseguimos resistir?

terça-feira, janeiro 11, 2022

Onde me faltas

De todos os sítios onde me faltas Onde me fazes mais falta é nas coisas simples: Nos passeios de carro com o vento nos cabelos Nas sessões de cinema no teu sofá Nos restaurantes abertos até altas horas Nas noites de outono com castanhas assadas e vinho tinto No Rock n' Roll até de madrugada Nas cervejas geladas em esplanadas quentes Nos pores-do-sol na praia e nos banhos de mar já com a lua alta Nas conversas banais onde o silêncio diz tudo Nos teus cabelos negros brincando nos meus dedos. Só eu sei onde me faltas. E é sempre onde não te tenho.

quinta-feira, outubro 28, 2021

Abismo

Às vezes não se morre logo. Às vezes estás à beira do precipício, um pé a resvalar para o abismo, o corpo a cambalear no vazio, a pele gelada no escuro Mas não morres logo. Dás um passo atrás, voltas as costas à escuridão, refugias-te num lugar seguro. Não se morre logo. Não se morre nesse segundo. Mas continuas a morrer no tempo que se segue. Todos os dias um pouco. Todas as noites um grito. Todas as manhãs um suspiro. Às vezes ficamos vivos no sofrimento, na perda, na solidão. Às vezes a morte é um silêncio de alívio. As vezes a vida é uma sombra atrás da porta. A dor é sempre convicta. Mas nunca se morre logo. Todos os direitos reservados | All rights reserved
© Rute M. Gonçalves, 2021

terça-feira, março 30, 2021

Psycho

…”Não há mais barreiras para atravessar. Tudo o que tenho em comum com o incontrolável e o insensato, com o imoral e o mal, todo o caos que causei e a minha total indiferença em relação a isso, é algo que já foi ultrapassado. A minha dor é constante e aguda. E não espero um mundo melhor para ninguém. Aliás, quero que a minha dor seja infligida a outros. Não quero que saia alguém ileso. Mesmo depois de admitir isto, não há catarse. O meu castigo continua a fugir-me e não ganho mais autoconhecimento interior. Nenhum novo conhecimento pode ser retirado do eu contei. Esta confissão não quis dizer nada”. “American Psycho”, 2000

terça-feira, setembro 01, 2020

Se o mundo acabar amanhã


Estavam na sala a beber vinho, quando alguém bateu à porta com estrondo. Quem é? - Perguntou ele, com uma voz preocupada. Do outro lado da porta nada se ouviu. Apenas silêncio. Levantaram-se os dois num repente para ver quem era. Quem estaria a fazer tal barulheira àquela hora tardia?

Precipitaram-se para a porta, mas não encontraram ninguém. Apenas um simples bilhete que dizia: “Se o mundo acabar amanhã, pelo menos morrem felizes”. Olharam um para o outro e sorriram.

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© Rute M. Gonçalves, 2020

segunda-feira, março 02, 2020

Flores e Lâminas


Sabia que já nada havia a fazer. Restava-lhe apenas lamber as feridas e partir. Sairia dali com pouca bagagem: meia dúzia de livros de poemas, um disco da Kate Bush da sua coleção de clássicos e uma ou duas peças de roupa. Nada mais. Não deixaria marcas. Não haveria despedidas. Já tudo tinha sido dito, vivido e sentido. Já se tinham esgotado todas as mentiras, todas as razões, todas as dúvidas. Todos os gestos eram agora inúteis, todas as palavras eram já objetos cortantes. Olhou uma última vez para a casa em silêncio antes de sair: já não sentia a brisa fresca do Verão no rosto e o Amor tinha por fim encontrado o seu caminho de flores e de lâminas.

 

Foto: Marina Abramvocic e Ulay "Rest Energy", Amsterdam 1980

sexta-feira, novembro 15, 2019

A certeza dos dias que morrem


Encontrámo-nos nessa tarde sombria
E o teu sorriso pleno foi todo o sol que eu precisava,
Como o calor que nos preenche quando é verão
E estamos na praia ao fim da tarde.
Estávamos no começo do mundo, no início do nosso tempo juntos.
E todos os caminhos me parecerem floridos
todos os sítios eram novos e inquietantes,
Enquanto falávamos do frio que fazia e de como o inverno tinha chegado tão cedo.
Fui tua nesse primeiro instante. Sei-o hoje com a certeza dos dias que morrem.
As tuas mãos foram a minha cama e a tua boca o único sitio onde queria ficar.

Estava feliz como fui poucas vezes depois disso.
Amei-te no escuro.
Recordo muitas vezes esse dia com júbilo.
E antes das lágrimas chegarem


Sorrio sempre. 




     *Foto retirada da Internet