sexta-feira, março 23, 2007

Escuridão


Tenho a cabeça latejante,
O peito incandescente de luz
E as mãos cheias de dúvidas
No momento em que revelas a tua verdadeira essência.

Sinto os dedos trémulos,
A voz perdida e embargada
E o Amor dormente
Nas horas inconstantes em que não estás.

Acordo fatigada dos sonhos,
Das lutas que os nossos corpos travam
E da esperança terminada
Nas noites em que não durmo.

Perco-me na escuridão oleosa,
Em oceanos agitados de mágoa
E comunico – te em voz alta
Que os nossos minutos são breves.

* Foto de Opiumia

Cicatriz


Nem tremi com o fechar da tua porta.
Considerei sofrer-te por mais tempo
mas tudo incha, desincha e passa.
Vais ser mais uma cicatriz:
vou-me esquecer de ti até que um dia me faças comichão e eu dê por mim
numa perfumaria qualquer a pedir uma amostra
de Opium que cheirarei aos poucos durante exactamente 3 dias.

Werther Damien Sevahc

* "The sea serpents IV", Gustav Klimt

quarta-feira, março 21, 2007

Quando fomos para a cama


Os resíduos de estrela que ficaram entre os seus cabelos
crocitavam como cascas de amendoins
a estrela cuja luz tu descobriste
há um milhão de anos já
no mesmo instante em que era dado à luz
um diminuto menino chinês.

«Os chinas são os únicos que não temem
os fantasmas
que nos saem da pele todas as noites.»

Lástima é que a estrela
não tivesse sabido fecundar teu seio
e que o pássaro da lamparina de azeite
a bicasse como casca de amendoim

o teu e o meu olhar
deixaram-te no ventre
um signo futuro de luminosa multiplicação.

Luis Buñuel, "Poemas", 1977
* Foto de Ricardo André Alves

quarta-feira, março 14, 2007

Revelação


Depois dos corpos que se tocam
E dos momentos que se cruzam
Em coincidências perfeitas,
Ficam os beijos em cinzas,
as camas brancas desfeitas,
E os corações descobertos

Depois dos cabelos revoltos
E das noites agitadas
Em emoções expostas,
Restam os dias solitários,
As horas banais da rotina
E as mãos vulneráveis

Depois da ilusão contagiante
E da ficção do encontro
Em sonhos profundos e intermináveis,
Fico com tempo a mais entre os dedos,
Com o peito despido de flores
E com um sabor amargo na boca

* Foto de A Brito



segunda-feira, março 12, 2007

Avó


A minha avó faz hoje 94 anos.
Imagino muitas vezes como serei com essa idade...
chego depois á conclusão que não resistirei tanto tempo.

A minha avó chama-se Beatriz e o tempo passou por ela como uma brisa de Verão
beijando as árvores frondosas: lenta e docemente.

A minha avó chama-se Beatriz, tem 94 anos, e fez-nos crescer a todos
com sonhos azuis e flores no cabelo.
Recebemos do seu seio a inspiração
e dos seus lábios os beijos quentes que nos mantém,
ainda hoje, unidos como um só.

Parabéns Avó!
* Foto de Alexandra_Leigh

quinta-feira, março 08, 2007

Obrigada Ringthane



Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill


* Foto de Indospan

terça-feira, março 06, 2007

O Amor em visita


Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue.
Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Herberto Helder
* Foto de DigiPainter