terça-feira, setembro 19, 2006

Este é o momento

Este é o meu momento perfeito,
O teu minuto de silêncio em eco
No meu crâneo oco,
Retumbante no meu corpo húmido.

Este é o meu dia glorioso,
A tua noite perdida em estilhaços
No meu peito aberto,
florescente nas minhas mãos de fogo.

Este é o Amor incompleto,
a tua ausência gelada em êxtase
na minha cama desfeita,
presa ao meu desejo mutilado.

Este é o tempo sem culpa,
Onde o meu coração transpira a tua fuga interminável.

Mensagem

Em cada palavra que escrevo
Revelo-te o meu segredo, liberto
O desejo amordaçado.
Fecho o envelope selado com o teu endereço:
Esta mensagem é para ti,
Apesar de saber que detestas poesia.

quinta-feira, setembro 07, 2006

O desejo veste o corpo


O desejo veste o corpo e inunda-o
E a enchente que transborda reflecte nos teus olhos acesos,
O meu coração perdido na maré cheia.

O desejo cobre o corpo e ocupa-o
E na revolução anunciada dos sentidos,
os teus dedos despertam as cordas inertes e rasgam em uníssono
o meu sorriso aberto e a minha pele cansada.

O desejo veste o corpo e devasta-o
E como no último de todos os amores impossíveis, a música termina apenas
quando ouves ao longe os primeiros aplausos.

(Inspiração: Rebecca Horn, "Bodylandscapes", 2005)

* Foto retirada da Internet




terça-feira, setembro 05, 2006

Icicle


Icicle, icicle where are you going
I have a hiding place when spring marches in
will you keep watch for me
I hear them calling
gonna lay down
gonna lay down

Greeting the monster in our Easter dresses
father says bow your head like the good book says
well I think the good book is missing some pages
gonna lay down
gonna lay down

And when my hand touches myself
I can finally rest my head
and when they say 'take of his body"
I think I'll take from mine instead
Getting off, getting off while they're all downstairs
singing prayers, sing away he's in my pumpkin p.j.'
slay your book on my chest
feel the word
feel the word
feel the word
feel it

I could have
I should have
I could have flown you know

I could have
I should have
I didn't so.

Tori Amos, “Under the Pink”, 1994

segunda-feira, setembro 04, 2006

Romance


E no entanto esperam sempre
enquanto a neve dos dias se confunde
com os seus cabelos
E o calendário dos seus rostos adormece
carruagens para lado nenhum
nos caminhos sem passagem de nível
onde as sombras se sentam nas gares
com bancos de madeira arrefecida

E no entanto esperam


Sempre


José Vultos Sequeira, “A cor dos Olhos”


* Desenho de Wen M.

O Toque da morte


Quem possui o toque da morte
não sabe a sorte que tem e de como irá fazer tantas pessoas felizes.

Porque o toque da morte é uma espécie de cura sem mentira.

Quem toca com o toque da morte
desconhece, por completo, o seu dom
e como o transmitir às pessoas que, verdadeiramente,
esperam por ele para começar a viver.

Porque o toque da morte faz-nos descer à terra
de onde nunca deveríamos ter levantado as nossas cabeças
e que nunca deveríamos ter pisado com os nossos pés.


Fernando Ribeiro, “As Feridas Essenciais”

sexta-feira, setembro 01, 2006

Asas


No momento em que explode a manhã
no teu coração exposto
murmuro palavras amplas
que tento encaixar à força
no tempo que me sobra

Abro trilhos de fogo pálido
no teu corpo inexplorado
Movimento-me em círculos abertos
e em espirais coloridas
que me levam ao teu âmago.

Nas horas em que a tua Alma dorme
em lençóis terminais e ásperos
devoro o vento do Norte
e acordo na penumbra branca
da casa – luz que sonhei para nós

Sempre que o coração respira
tu deixas para trás o Sol ardente
e o caminho agreste que percorreste
Vislumbras, na bruma, os dias perdidos
É tempo de fechar as Asas.



Fala do feto com cabeça de cão antes do aborto


Prometo chorar esta noite. Prometo chorar esta última noite
com cabeça de cão.
Depois serei feto com nome de criança.Nado – morto.
A coisa horrível sobre hemoptises vaginais.Sem classificação. E porquê?

Com pinças farão festas na cabeça morta. Perguntarão porquê.
Hão-de encontrar sob a língua um verme causa de isto tudo.

Nove meses em espiral, célula a célula até ao ganido nocturno.
Chamarão raiva, doença de cão, e perguntarão porquê.

Hão-de pôr a fotografia nos jornais. De frente, perfil, a mãe.
O Útero rasgado. Crime prematuro.
Prometo chorar esta última noite com corpo de criança. E perguntarão porquê.


Bizarra Locomotiva, “Bestiário”, 1998


* Foto de Toxikbaby

Sobre outros lábios


Eu crescia para o Verão.
Para a água
antiquíssima da cal
Crecia violento e nu.

Podiam ver-me crescer
rente ao vento,
Podiam ver-me em flor
exasperado e puro.

Á beira do silêncio,
eu crescia para o ardor
calcinado dos cardos
e da sede.

Morre-se agora
entre contínuas chuvas,
Os lábios só lembrados
de um Verão sobre outros lábios.


Eugénio de Andrade


* Foto de Claire Amethyst

Horto


Homens cegos procuram a visão do amor
onde os dias ergueram esta parede
intransponível

Caminham vergados no zumbido dos ventos
com os braços erguidos – cantam

A linha do horizonte é uma lâmina
corta os cabelos dos meteoros – corta
as faces dos homens que espreitam para o palco
nocturno das invisíveis cidades

Escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos
e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios

Adormecem sempre
antes que a cinza dos olhos arda
e se disperse

No fundo do muito longe ouve-se
um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto
dos incêndios

Prosseguem caminho
com a voz atada por uma corda de lírios
Os cegos
são o corpo de um fogo lento – uma sarça
que se acende subitamente por dentro


Al Berto, “Horto de Incêndio”

* Foto de Elektrische