segunda-feira, janeiro 26, 2009

As Estrelas - Narrativa de um Pastor Provençal


“No tempo em que eu guardava gado no Luberon, estava semanas inteiras sem ver vivalma, sozinho na pastagem com o meu cão Labri e as minhas ovelhas. Lá de longe em longe, o eremita do Monte Ure passava por ali á procura de ervas medicinais, outras vezes eu via a cara enfarruscada de algum carvoeiro de Piemonte (…). Por isso, de quinze em quinze dias, quando ouvia no caminho os guizos da mula da nossa quinta que ia levar-me as provisões da quinzena, e via aparecer a pouco e pouco, acima da encosta, a cabeça esperta do moço da quinta ou a touca berrante da velha tia Norade, sentia-me verdadeiramente feliz. Pedia-lhes que me contassem as novidades lá de baixo, os baptismos e os casamentos; mas o que mais me interessava era saber o que era feito da filha dos patrões, a menina Stéphanette, a rapariga mais linda dez léguas em redor. Sem mostrar demasiado interesse, informava-me se ela ia muito a festas, a serões e se continuava a ter muitos pretendentes; e a quem me perguntar o que isso me importava, a mim, pobre pastor da montanha, eu respondo que tinha 20 anos e que a Stéphanette era a coisa mais linda que eu tinha visto em toda a minha vida.

(…) Que linda que ela era! Os meus olhos não se cansavam de a olhar. È verdade que nunca a tinha visto de tão perto. Às vezes, no Inverno, quando os rebanhos desciam para a planície e eu voltava á quinta para cear, ela atravessava a casa a correr, sem mesmo falar aos criados, sempre bem arranjada e um pouco orgulhosa… E agora ei tinha-a ali na minha frente, só para mim. Não era de perder a cabeça?

(…) Ela olhou outra vez para o alto, com o queixo apoiado nas mãos, envolta na pele de carneiro como uma pastora de estrelas:
- Quantas estrelas! E como é bonito! Nunca tinha visto tantas… e sabes os nomes delas Pastor?
- Sei sim, Patroa… Olhe! Mesmo por cima de nós é a Estrela de Santiago (Via Láctea). Vai desde a França direitinha á Espanha. Foi S. Tiago da Galiza quem a traçou para indicar o caminho ao valente Carlos Magno quando ele fazia guerra ao Sarracenos. Mais além, tem o Carro das Almas (Ursa Maior) com os seus quatro eixos resplandescentes. As três estrelas de lá são as Três Mulas e aquela muito pequenina ao pé da terceira é o Cocheiro. Vê em toda a volta esta chuva de estrelas a caírem? São as Almas que Deus não quer no Céu (…) Mas a estrela mais bonita de todas, Patroa, é a nossa, a Estrela do Pastor, que nos ilumina ao alvorecer quando saímos com o rebanho, e á noite quando o recolhemos. Também lhe chamamos Magalona, a bela Magalona que persegue Pedro de Provença (Saturno) e se casa com ela de sete em sete anos.
- O quê Pastor, as estrelas também se casam?
- Pois casam, Patroa.
E quando tentava explicar-lhe o que eram esses casamentos, senti qualquer coisa fresca e suave pousar levemente no meu ombro. Era a cabeça dela, cheia de sono que se apoiava no meu ombro, num rogaçar de fitas, de rendas e de cabelos ondulados. Ficou assim, imóvel, até que os astros do seu empalidecerem, apagados pela luz do dia.
Eu via-a dormir, um pouco perturbado no fundo do meu ser, mas santamente protegido pela noite límpida que nunca me trouxe senão ideias, pensamentos puros. Em nossa volta, as estrelas continuavam a sua rota silenciosa, dóceis como um imenso rebanho; e por instantes, julguei que uma dessas estrelas, a mais frágil, a mais brilhante de todas, que se perdera no caminho, tinha vindo repousar no meu ombro para dormir.”



Alphonse Daudet, “Cartas do meu Moinho”, Editorial Verbo, 1978


* Imagem retirada da Internet