quarta-feira, dezembro 23, 2009

O teu sangue


O frio dói-me nos olhos e gela-me os movimentos, o vento forte invade-me o corpo trémulo e a alma vaga, e lanço – me para frente, correndo pela rua deserta, plena de bruma e Inverno. Levo nas mãos o teu sangue, a tua vida extinta, a tua respiração morta e a lembrança negra do instante em que te perfurei o peito profundo, te atirei para o chão branco de mármore e te beijei o rosto gelado pela última vez. O teu sangue nos meus dedos, a tua marca indelével. Amo-te ainda mais agora.
* Foto retirada da Internet

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Em fuga

Como era habitual, ela começou pelo fim. Tinha esta mania incontrolável de trocar as voltas a toda a gente, de as fazer torcer o nariz de inquietação, de as fazer abrir a boca e os olhos de espanto. Isso dava-lhe um prazer imenso, uma satisfação sem precedentes. Aurora considerava-se uma mulher inteligente e imprevisível. Sempre assim fora e não queria mudar. Gostava de calcorrear as ruas á noite, gritar palavras sem sentido ou simplesmente ficar em silêncio nos momentos em que toda a gente lhe cobrava uma resposta. As pessoas que se cruzavam no seu caminho, tinham dificuldade em compreendê-la. No fundo era uma solitária, uma alma errante á procura de respostas para um mundo confuso, que não conseguia abarcar. Até que um dia encontrou Romeu. Romeu era um jovem moreno, que lia livros compulsivamente, tocava trompete nas noites frias e cheirava sempre a montanha. Conheceram-se numa viagem de comboio entre Lisboa e Sintra, quando Aurora deixou cair o bilhete e ele prontamente o apanhou e lho entregou, olhando-a fixamente nos olhos. Ao observa-la discretamente, reparou que tinha pernas esguias e apetecíveis e soube nesse instante que tinha de namorar com ela. Afinal de contas, já era altura de perder a mania de namorar os lençóis.

Pablo e a chuva


“Eu andava á procura de um sítio sossegado para morrer” – estas foram as palavras que comecei a escrever na primeira e última carta para Pablo. Nunca cheguei a terminar. As lágrimas caíam no papel e manchavam a tinta. Depois disso, nunca tinha coragem para encarar o papel em branco.
Hoje acordei com o barulho da chuva. Definitivamente, odeio a chuva. Este tempo cinzento deprime-me, amargura-me, irrita-me. São 9 da manhã, tenho de ir trabalhar e não me apetece atravessar a chuva que cai, até chegar á estação de comboios. Saio do prédio e paro debaixo das varandas, na esperança que se dê um milagre e a chuva cesse. Já passaram cinco segundos e não aconteceu nada. A chuva cai tanta e com tal força, que as ruas se transformaram em rios impossíveis de navegar. Nestes momentos, lembro-me sempre de Pablo, das suas canções de amor e da caixa de fósforos que me ofereceu no dia em que nos conhecemos. Pablo era uma das minhas melhores recordações. Conhecera-o no México, numa das minhas inúmeras viagens e foi amor á primeira vista. Pablo cantava músicas mexicanas num bar local e tinha a voz mais melodiosa e romântica que já alguma vez ouvira. Os seus olhos eram negros e brilhantes, o seu cabelo era longo e ondulado e as suas mãos eram perfeitas, como que desenhadas. Hoje, tenho apenas as cartas. Essas cartas que Pablo me enviou todos os meses, às quais eu nunca respondi, porque nunca encontrei as palavras certas.
* Foto retirada da Internet

A Retrosaria


Sempre adorei aquela retrosaria. Aquela que fica em frente á Pastelaria da MImi, mesmo na esquina. Lembras-te mãe? Quando era pequena, costumava ir lá todos os dias, só para ficar a admirar todas aquelas linhas de cores que eu nem sabia que existiam, para tocar nos novelos de lã, gordos e fofos. Mas o que eu gostava mesmo era dos botões. Havia botões de todas as cores e de todos os feitios, grandes, médios e pequenos, de madeira, de plástico, de metal… tantos e tão bonitos que eu perdia a noção das horas e ficava sentada no chão da loja, a remexer nas caixas a transbordar de botões, até que tu me vinhas chamar, porque já era muito tarde e o pai esperava-nos para jantar.
* Foto retirada da Internet

Há quanto tempo...

Há quanto tempo nada do que eu digo faz sentido, há quanto tempo espero por uma resposta, por um sinal, por um gesto. Este vazio silencioso aflige-me, paralisa-me, provoca-me insónias. As tuas palavras costumavam ser doces, muitas e animadas, as tuas emoções sempre á flor da pele. Eras um optimista e deliciavas-te com as coisas mais simples. Dizias muitas vezes: “como era bom que tudo na vida fosse assim, doce e suave como um chocolate de leite”.
Mas depois emudeceste. Tornaste-te uma espécie de estátua fria e cinzenta. Eu gostava muito das tuas ideias. Mas nada resiste a esse mistério silencioso. Por isso deixei de gostar.

Mercado


Tenho saudades desse tempo: as viagens intermináveis ao mercado para escolher frutas e legumes, para admirar peixes brilhantes nas bancas, para passear por entre margaridas e cravos vermelhos. A minha avó era assim, encarava o dever de ir às compras como um ritual sagrado, em que nada podia falhar. Nesses momentos, parecia flutuar, com a sua pele morena e o cabelo ainda negro que ondulava ao vento, libertando sempre um doce aroma a canela. Aos sábados, levava sempre o meu irmão àquela geladaria. Invariavelmente, eu escolhia um gelado de morango. Lembro-me sempre dos lanches que ela me preparava: leite com chocolate ou chá de tília e biscoitos de erva-doce. Os domingos de manhã eram sempre iguais: vozes excitadas que perguntavam coisas sem parar e um cheiro intenso a cravinho.
* Foto retirada da Internet

Efeito Noite


“O tempo não espera, apressemo-nos, que vem lá chuva”, alguém gritou, lá fora na rua. Eu, pessoalmente, não acreditei. Ainda há pouco o céu estava azul e límpido e era quase impossível que o tempo tivesse mudado assim tão depressa. É certo que por vezes nos surpreendemos. Em muitos momentos, a noite chega de mansinho e em silêncio e nem sempre reflecte a lua, por vezes reflecte apenas a nossa sombra cinzenta, sem janelas.
A vizinha do 5º esquerdo queixou-se que as flores já não tinham cheiro e o livro que estava a ler, parecia, àquela hora, completamente desinteressante. A noite, por vezes, tem esse efeito.
* Foto retirada da Internet