A Infância
Nesse tempo era assim. A escuridão da noite precedia sempre manhãs ternas, dias cálidos e mundos em chamas, acesos em cada gesto, em cada nome, em cada rosto. O tempo, para nós, era apenas uma brisa passageira, leve e quente, como as que nos tocam no Verão, ao fim do dia. O tempo apenas passava, enquanto nós jogávamos às escondidas no pátio, e encontrávamos papoilas reluzentes no campo, e bebíamos água no chafariz do jardim, e ouvíamos a Avó a contar histórias de lobos e montanhas brancas de neve, e, em todos os dias felizes, havia bolo de mármore ou de iogurte, a fumegar, em cima da mesa da cozinha.
Nós éramos assim nesse tempo doce, oportuno e imaculado, onde só havia tristeza quando a Mãe se zangava, ou quando caíamos da bicicleta e o joelho doía, ou quando o peixe vermelho jazia inerte nas águas calmas do aquário da sala. Nós éramos assim, a cada dia um super-herói ou um desenho animado, sonhando acordados com uma mão cheia de chocolates e antecipando o abraço do Pai, quando era hora de voltar para casa. Vagueávamos nos dias sem rumo e flutuávamos sobre os objectos inanimados, como quem voa, e tínhamos muitos segredos, que guardávamos como tesouros, em lugares intransponíveis.
Nós éramos assim. O tempo levava-nos sempre ao repouso, e quando tínhamos sorte e a noite era nossa amiga, sonhávamos durante horas a fio com oceanos dourados e praias luminosas, com flores brancas e estrelas cadentes e com anjos de cabelos loiros e de asas translúcidas, que nos davam a mão e nos beijavam a face.
* Pintura "A Infância", de Albano António Langa, retirada de www.artblanga.com