quinta-feira, dezembro 28, 2006

O sol nas noites e o luar nos dias


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro

porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse

dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia, "Poesia Completa"

sexta-feira, dezembro 22, 2006

FELIZ NATAL


"O Natal é muito mais do que um a data ou um dia no calendário.
É uma jornada do espírito, das trevas para a luz, do caos para a paz,
da separação para a união do Amor."

Karen Katafiasz

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Presságio



Luto com o nosso momento final

Antecipado nos sonhos de ontem,


Presente em cada gesto banal

E em cada grito contido.


Anuncio o nosso beijo imaginário

Revelado em presságios do passado,

Debatendo-se nas línguas ácidas,

E agitando-se num mar de lágrimas.


Ataco a nossa solidão crescente

Alimentada com os medos de hoje,

Insuflada pelas palavras perdidas,

No vazio que os nossos braços alcançam.


Volto ao primeiro minuto

Antes de nos transformamos um ao outro

Em estátuas de mármore e sal,

Com o coração gelado e as mãos inertes.


Hoje somos dois Abismos negros,

Sem Alma pra absolver


Nem regresso.

* Foto de TiaDanko


segunda-feira, dezembro 18, 2006

Devia ter-te beijado


Devia ter-te beijado
e levado as mãos das omoplatas
aos teus seios
sem indícios de outra vida
e dançando a minha língua na tua
e um mamilo entre os meus dedos
a tua cabeça no meu ombro
com a textura do meu beijo
e o calor das minhas mãos
nas tuas virilhas,
cantando nos silêncios
das palavras abafadas
em pinturas absolvidas
uma rara vez
do insano fogo da lareira.
Devia ter-te beijado
e fazer-te esquecer as outras mãos

e na redoma fica um corpo
desenhando sem poder
o teu nome
nos seus cantos.


Werther Damien Sevahc

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Escuro


Pergunto-me desde quando
deixou de haver futuro
nas janelas.
Janeiro dói nos olhos
como areia
e tu e eu estamos para sempre
sentados às escuras
no Verão.

Rui Pires Cabral
* Foto de Serninguém

O Navio de Espelhos

O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ála
e o corpo sobe os mastros
e escruta o mar profundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo


Mário Cesarinny in "A Cidade Queimada"

quarta-feira, dezembro 06, 2006

O Tempo


O tempo é apenas a distância entre nós,
O vazio que se enche de palavras estéreis,
O Amor que eu não quis e não disse.

O tempo é apenas o medo entre nós,
A Alma sem visão no escuro,
O coração absurdo debatendo-se sem fôlego.

O tempo é apenas o teu silêncio.


* Foto de Bloody Earth


Como eu


Há muitas semanas que faço perguntas
Que ninguém sabe responder.
Há muitos dias que me entrego à dúvida
Porque tudo o que encontro é incerto.
Nem sempre as imagens que procuro
Têm as cores e formas perfeitas porque
Nos sonhos e conjecturas tudo é nublado e inatingível.
Há muito tempo que me tornei insaciável
Porque os desejos e os afectos
Nunca se alimentaram de espectros.
Nada do que devora o meu interior
É brutal o suficiente para me desarmar
Porque as mãos teimam em tocar o vazio
E o coração insiste em ter memória.
Há poucos minutos tocou o telefone e eu não atendi
Porque o que ouço do outro lado
Arrefece-me o calor do corpo
E paralisa-me os movimentos.
Neste momento acabam-se-me as palavras
Porque já todas foram ditas fora do contexto
E abusadas no seio do seu habitat natural,

Tal como Eu.
* Foto de Kirttik

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Traças

As traças espiavam-nos através da janela.
Sentados à mesa, os seus olhos
cintilantes cravavam-se em nós,
mais duros que as suas frágeis asas.

Estareis sempre lá fora,
por detrás do vidro. E nós aqui dentro,
cada vez mais dentro. As traças espiavam-nos
através da janela, em Agosto.


Adam Zagajewski