Espelho
O espelho erguia-se solene e majestoso, no meio da penumbra do fim de tarde, no quarto principal da casa. Reflectia a última luz daquele dia gelado de Inverno transmontano de forma sublime. Devia ser muito antigo. Todos os pormenores o indicavam: a madeira escura e maciça recortada de efeitos florais, a forma ligeiramente oval, a maneira sólida como o pé se enterrava na alcatifa grená. Devia ser antigo, mas exibia um fulgor anormal como se tivesse acabado de ser comprado. Luzia como se fosse novo.
A casa também era antiga e dava claros sinais disso. Quando recebi a notícia desta herança, de uma Tia-Avó que nunca conheci, a não ser por retratos difusos que a minha mãe me mostrava em momentos familiares nostálgicos, ainda tive esperança que pudesse ser algo de positivo para a minha vida. Uma boa notícia. Claro que me enganei. Assim que cheguei a esta aldeia escondida, a este local inóspito de gelo cortante e olhei para a casa que se erguia á minha frente, cinzenta e decrépita, percebi do que se tratava. Claramente, um presente envenenado.
Tudo naquela casa era vetusto e disforme. O tempo decididamente pesou toneladas naquelas paredes e marcou-as para sempre. Por isso, encontrar aquele espelho, reluzindo no meio dos destroços, era uma experiência inquietante. Aproximei-me e toquei-lhe ao de leve. Estava perfeito. Na parte de trás estava inscrita uma data: 1909. Parecia ser obra de feitiçaria, um espelho com mais de 100 anos sem ter sequer um risco, uma lasca na madeira, uma mancha no reflexo.
Encarei o espelho de frente. Todo o meu corpo reflectido naquele objecto fascinante, as cores vivas da minha roupa faiscando, quase uma pintura. Fixei os olhos, por momentos, no reflexo do meu rosto. Não me reconheci. Os olhos pareciam diferentes, mais brilhantes, como que bailando numa cara de traços distorcidos, o nariz disforme, a boca assumindo formas impossíveis. Levei as mãos á cara, tentando perceber o que tinha mudado. Nada. Ao toque, tudo se mantinha na mesma, eu como me lembrava de mim. Mas no espelho não era eu.
Estendi as mãos para o espelho. Brilhava agora mais que nunca, emanava uma luz clara, atraente como um íman. Ao tocar a superfície, percebi que não era dura. Era como enfiar os braços em água, como mergulhar num mar profundo. O meu corpo inteiro engolido, na penumbra e no Inverno daquele quarto, por um espelho centenário.
Estendi as mãos para o espelho. Brilhava agora mais que nunca, emanava uma luz clara, atraente como um íman. Ao tocar a superfície, percebi que não era dura. Era como enfiar os braços em água, como mergulhar num mar profundo. O meu corpo inteiro engolido, na penumbra e no Inverno daquele quarto, por um espelho centenário.
* Foto de Tiago Sozo Marcon retirada da Internet