terça-feira, novembro 23, 2010

Ponto de Ruptura



O mundo todo geme de dor enquanto eu me distendo,
me altero, me transformo sob o peso absurdo da pressão.
Nada é tão real como esta carga, este fardo gigante nas minhas costas, este ensaio de morte rasgada.
Enquanto o tempo hesita e se renova, enquanto as nuvens se avolumam e se rebelam
o meu corpo de cerdas e fraquezas antevê o grito final, a derradeira mutilação.
Mutilada a vida e a alma, perdida a esperança e a mágoa.
O tempo é inexorável, impiedoso, cruel e castiga-me de forma brutal, esbofeteia-me com as costas da mão.
A dor é já insuportável, preciso rebentar depressa, explodir com estrondo,
transformar-me em milhões de partículas negras , levitar de encontro ao alívio.
O medo é tudo o que resta no momento branco em que se dá o impacto final,
no minuto perfeito em que conheço o ponto de ruptura.
O fim é breve.
Doce.
Imutável.
* Foto retirada da Internet

segunda-feira, novembro 22, 2010

Amor ao 1º Livro


Primeiro dia de aulas. Sol a bater na janela do quarto. Dores de estômago. Nervos e medo. É sempre assim, todos os anos. O mistério que encerra uma nova turma, a ansiedade á flor da pele á medida que se percorre o breve caminho até á escola, o tempo que parece correr mais devagar após o toque de entrada para a primeira aula.
O caderno aberto em cima da mesa e as primeiras notas são rabiscadas um pouco á pressa. O olhar teima em circular pela sala, procura os rostos dos colegas, os que conhece e os que observa pela primeira vez. Pára os olhos na mesa da ponta. Ocupa-a uma rapariga desconhecida, que parece muito atenta às palavras do professor. Escreve freneticamente. O sol reflecte-se nos seus cabelos loiros, como se fosse um espelho. Alguma coisa nela lhe prende a atenção. Decide que quer conhecê-la.

O intervalo torna-se obsessivo. Procura por todo o lado e não a encontra. Respira fundo. Desespera. Ao entrar no refeitório, percebe que almoça sozinha na mesa junto á janela. A luz do sol. O cabelo dela. Compra o almoço. Senta-se ao seu lado. Trocam umas palavras. Apresentam-se. Ela tem olhos cor de amêndoa e uma boca perfeita que sorri sem medo. Ele mexe no cabelo e diz piadas. Ela tem a boca seca. Ele tem o coração em batida frenética.
Depressa se tornam inseparáveis. Olhares furtivos e sorrisos velados durante as aulas. Mãos entrelaçadas e beijos roubados nos corredores. Gargalhadas e conversas intermináveis. Ele diz-lhe que sonha com viagens á volta do mundo e que tem as gavetas cheias de histórias para serem contadas, palavras ansiosas para serem um livro. Um livro, o seu livro. Ela conta-lhe os seus segredos mais profundos de adolescente e mostra-lhe o livro de poemas que já escreveu. É um livro de capa mole, pequeno, cabe num bolso. Lá dentro, estão os seus segredos. Poemas recitados pela sua alma.

Combinam em segredo que vão escrever um livro a quatro mãos. Estão apaixonados pela escrita. Estão apaixonados um pelo outro. Querem escrever um livro que seja dos dois. Ele quer escrever sobre a luz do sol reflectida nos cabelos louros dela. Ela quer contar as histórias das viagens dele pelo mundo. Um livro para tirar as folhas escritas das gavetas fechadas. Um livro para exaltar o seu amor com sabor de primeira vez.
* Pintura "Dois Jovens lendo", Pablo Picasso

quinta-feira, novembro 11, 2010

Sobre os Casamentos


Olho pela janela e já não há sol. A noite apoderou-se do espaço e eu nem me dei conta. Estou sentada a uma mesa de toalha bordada, como a festa impõe. Os copos de cristal, de vários tamanhos recebem os líquidos festivos e reflectem a luz do candeeiro imponente que, do alto do tecto, parece estar prestes a cair em cima da minha cabeça. As mesas estão dispostas numa forma geométrica desconhecida (entre um rectângulo e um círculo) e os convidados, deliciados com as fartas variedades culinárias, descansam os pés mastigados pelos sapatos de festa, contam histórias felizes e acontecimentos trágicos e mexem-se incessantemente nas cadeiras, ajeitando as suas fatiotas incómodas e engalanadas. Os noivos passeiam de mesa em mesa, por entre beijos de encomenda e brindes com discurso: a noiva, branca e leve como uma nuvem, os olhos negros tão brilhantes como a aliança de ouro que lhe enfeita a mão esquerda; o noivo, encaixado no seu fato escuro, espalhando abraços e apertos de mão, partilhando piadas de teor alcoólico.
Ouve-se uma música ao fundo, abafada pelos risos e conversas e eu tenho os olhos fixos no centro de mesa com flores brancas. O meu aborrecimento é óbvio, quase palpável. Olho para o relógio e imagino os locais interessantes onde poderia estar, não fosse este casamento. Já passaram muitas horas desde que saí de casa com o vestido novo, a maquilhagem feita á pressa, o cabelo liso e perfumado e os pés enfiados nuns sapatos demasiado estreitos para usar durante um dia inteiro.
O primeiro sacrifício é a cerimónia religiosa. Cumprir todos os rituais eclesiásticos associados á missa é um massacre. Durante mais de uma hora, o Padre disserta sobre a importância do Amor e do Casamento. Nós temos de ouvir o sermão em completo silêncio, levantar e sentar nos momentos certos da celebração e acompanhar o sacerdote nas orações, dizendo em uníssono palavras de fé, que toda a gente parece conhecer, menos eu.
Seguem-se as fotografias. Não há nada pior do que tirar fotografias por obrigação, ter de esperar pelo momento certo para posar junto dos noivos, já com o penteado desfeito, o sorriso amarelo e o estômago a dar horas.
No fim, restam-me as sobremesas. O pão-de-ló com ameixas de Elvas, a mousse de chocolate com amêndoas, o pudim de ovos com caramelo, a tarte de limão merengada. São as únicas coisas que ainda me animam.
* Foto retirada da Internet

terça-feira, novembro 09, 2010

O Comboio Can-Can


O comboio avança no seu ritmo galopante. É uma manhã clara, como tantas manhãs de Primavera. Tenho a cabeça encostada á janela e, do outro lado do vidro, a paisagem suburbana corre cinzenta, igual a todos os dias. Dentro do comboio, é hora de ponta.
Por entre as pálpebras pesadas do sono precocemente interrompido, percebo que alguém se senta no lugar ao meu lado. Chega-me às narinas um odor intenso, um agradável perfume de homem. Olho de soslaio para o passageiro. É um homem jovem, de pele clara e cabelo loiro. Veste um fato escuro, de uma cor indefinida que parece um pouco fora de moda. Lê um livro pequeno, de capa vermelha. Há algo na sua figura que me é familiar e que, ao mesmo tempo me intriga. Parece saído de um filme. Por segundos, levanta os olhos do livro e encara-me de frente, com um par de olhos verdes brilhantes e inquiridores. Tenho então uma revelação fantástica: é Christian. Ainda mal tinha assimilado esta informação surpreendente, quando surge um homem minúsculo, de óculos redondos e bigode fino, muito agitado e que grita: “Christian, prepara-te”…O homem pequeno parece… Toulouse-Lautrec?
Ouve-se uma música. Distingo a melodia de “Your Song” de Elton John, que soa, cada vez mais alto. Christian levanta-se do lugar e parece dirigir-se a alguém… é Satine que chega, deslumbrante num vestido vermelho reluzente, com os cabelos ruivos em desalinho. Linda como eu me lembrava dela. Tocam-se nas mãos, beijam-se na boca, dançam por todo o comboio, rodopiam ao som da música.
Olho em volta, estupefacta. No meio de toda esta euforia de Moulin Rouge, todos os passageiros parecem indiferentes ao que se passa, como se a festa fosse invisível aos seus olhos.
Agora ouve-se Can Can… bailarinas de vestidos rodados aparecem, entre movimentos arrojados de pernas e folhos coloridos… são muitas, são tantas que ocupam todo o espaço livre do comboio… Toulouse dança freneticamente com uma bailarina de cabelo negro e pernas atrevidas e Christian e Satine juntam-se á celebração, de mãos e corpos entrelaçados.
A música sobe de tom, e um solavanco repentino do comboio, faz-me estremecer no assento. Procuro Satine, Toulouse, as bailarinas de Can Can. Procuro Christian. Ao meu lado, está um senhor gordo, de cabelo ralo, que lê o jornal desportivo. Olho para ele desapontada e pergunto-me se alguma vez terá ido ao Moulin Rouge.
Eu nunca fui. E isso é imperdoável.
* Foto retirada da Internet