quinta-feira, novembro 30, 2006

Preocupações?


Despertar


“Saiu o homem com a alvorada. Cavalgando nuvens brancas, enfrentou mil aventuras e esteve no centro de sonoros combates entre loucuras, sonhos e ouro.
Era alta noite e as estrelas estavam distantes. Avançou entre filas de estandartes, até ao dossel vermelho, onde estava o trono de ouro – coroa, louros e glória!
Desfez portas chapeadas de metal, desfez cadeias, recolheu os ossos dos heróis, desafiou as feras e a seus pés jaziam robles e combatentes.
Os centauros, que o precediam, deixavam a seus pés, ao passar, sulcos em chamas, enquanto ele devolvia aos seus lares os galeotes e os cativos á pátria.
Passou como relâmpago de justiça por tronos e tribunais e por todos os tronos imperiais, enquanto basalto e granito, silex e quartzo rodeavam sangrados até ao meio da borrasca.
Depois de sulcar mares e estrelas no seu navio de espuma, em cuja proa estava escrito “Renome”, depois de vencer todas as cabeças coroadas, regressou o homem ao seu ponto de partida, ás praias de areia, algas e resíduos.
Regressou e despertou”.


Ignácio Larrañaga, “Do sofrimento á paz – para uma libertação interior”
* Foto de NDP06

quarta-feira, novembro 29, 2006

Os escafandros apaixonados

Vem hoje na primeira página de todos
Os jornais que nunca existiram,
Foi hoje comentado em todas as televisões
E em todos os supermercados,

Serviu hoje de escudo (porque o dólar está muito caro)
A todos os refugiados
do planeta Vénus
e a todos os nus do signo
de Sagitário,
a comovente notícia dos escafandros apaixonados.


David Mourão Ferreira, “Um Amor feliz”

terça-feira, novembro 28, 2006


Julguei felizes as nuvens por não terem
útero
até me darem lástima por não terem
nádegas.
Não quero dizer com isto que não tenham muitas vezes
a forma de um útero,
o volume de nádegas.

Também conheço algumas mulheres
providas de útero e de nádegas,
que não passam de nuvens.

De tudo isto o mais feio
é só a palavra nádegas.

Só a palavra.

Falo por mim, e de mim, é claro.


Vinicius de Moraes

segunda-feira, novembro 27, 2006

O Beijo




Toca-me o teu beijo
ao romper da aurora,
percorre-me veloz o corpo,
todos os poros vibrantes
como uma nascente de água límpida.

Navega-me na boca a tua boca,
o cheiro húmido da tua saliva doce,
o toque frenético das línguas em êxtase.

Descansa o teu beijo
nos lábios dormentes,
o corpo presente em tons de lilás e púrpura,
a promessa salgada
da onda perfeita.

Beija-me agora os lábios nascentes
lambe-me as lágrimas de fogo.
* Pintura de Gustav Klimt

sexta-feira, novembro 24, 2006

O Paraíso


Abraças o mundo todo
com os teus olhos flamejantes
e encerras na tua boca
o segredo da minha existência
Os teus braços acorrentam os corpos
á praia
e impedem tremores de terra
Nas tuas mãos escondes
a alma dos seres marinhos que povoam os nossos sonhos
e todos os dias nascem novas histórias
O teu peito é a minha cama,
porque me embala e me eleva
sempre que a respiração acelera
Os teus dedos são voláteis,
descobrem tesouros escondidos
e põem-me flores no cabelo
mesmo depois da Primavera
Eu durmo de espírito limpo,
aos pés da tua cama, todas as noites do Paraíso,
sempre que é maré-cheia.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Outono




É o vento que bate à tua porta
Quando todas as estações mudam
E os amigos regressam a casa

É a chuva que abre a tua janela
Quando a solidão se torna cinza
E as tuas mãos adormecem

É a brisa que te amachuca a roupa
Quando vagueias sozinho
E não encontras o caminho de volta

É o fogo que derruba a tua casa
Quando já não há esperança
E as luzes da cidade já morreram

É o fogo

Eu já deixei de existir

Não Cantes


Olha em redor dos bosques as veredas destruídas
pela explosão devastadora das minas e ouve
as vozes límpidas morrerem no poema

Antes e depois da alegria
antes e depois do pânico

Grava na parede esboroada do ar
O sulco ténue da infância – e fala-me dela
Aproxima-te
para veres o horror tranquilo das imagens
no fundo dos meus olhos

Antes e depois da alegria
antes e depois do pânico

Debruça-te naquele terraço virado ao inimigo
onde um rosto de estuque arde e
um ferro reduziu a memória a nada

Antes e depois da alegria
antes e depois do pânico

Em volta das casas demolidas o anoitecer
O lume incontrolável – e alguém
atravessa o deserto
com uma criança de jade nos braços

Antes e depois da alegria
antes e depois do pânico
mas
sempre durante o sofrimento

Não cantes


Al Berto, “Horto de Incêndio”

* Foto de Charles Diesel

Morde-me a boca outra vez


Morde-me a boca outra vez
E enche-me os olhos de beijos
Deita-te abraçada a mim
E fica á espera de me veres acordar
És como um mar agitado,
E eu em ti, um barco à deriva;
Diz outra vez que me queres
Sossega em mim o teu peito;
Ainda é cedo para dormir
Morde-me os olhos, amor


Manuel Jorge Marmelo, “O Amor é para os parvos”

sexta-feira, novembro 17, 2006

O Sangue


No meio da noite cálida,
observo os rostos que passam
no corredor da morte
e engulo um café amargo
que me pesa no estômago.
No meio da mesa redonda
vejo as mãos distantes e pesadas
de quem não adivinha o futuro
e insisto na leitura apática
dos sinais que me sufocam.

No meio da noite sem brisa
o sangue brota das feridas,
e espalha-se nas pedras brancas,
em direcção ao rio.

No meio do desespero das vozes que chamam
eu vagueio no pânico opaco
que se instalou entre nós
e tento refugiar-me
nas lágrimas ácidas que me humedecem a roupa.
No meio dos corpos que caem,
procuro um sentido para um tempo absurdo
que se move em câmara lenta
e ouço aplausos distantes da plateia serena
que assiste à tragédia.

No meio da noite sem brisa
o sangue brota das feridas,
e alastra na minha pele
em direcção à vergonha que me consome.

Enquanto gritamos no silêncio escuro
e o branco se torna vermelho (de sangue),
a noite procura a madrugada
e o mundo todo adormece
menos nós.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Há demasiada beleza em ti


Há demasiada beleza em ti,
quando caminhamos de mãos dadas
entre a chuva e as fracturas da alma.

Conheci-te, ainda tu remendavas
as asas de anjos tresmalhados
sob as bandeiras brancas
de uma adolescência a sangrar,
e desenhavas corações de giz
nos muros da escola velha.

Toda a beleza desses dias adormece
ainda em mim, a sua corola intacta,
neste Outono de pássaros mortos.

E é por essa beleza que hei-de ir
ao encontro do vento,
para te devolver a inocência da labareda,
o perfume azul do lilás, -
e as pétalas de todas as meninas
que docemente violei por ti.

João de Mancelos, "Línguas de Fogo", 2001
* Foto de Devilicious

Than the Serpents in my arms


“Dorme, dorme meu menino
dorme no mar dos sargaços
que mais vale o mar a pino
que as serpentes nos meus braços”

Mário Cesarinny


“And when all life as you know it
fails
And all the ghostlike lips taste just the same

What better comfort can you find
than the serpents in my arms” (…)


Moonspell, Darkness and Hope, 2001
* Foto de Paulo Moreira

terça-feira, novembro 14, 2006

Desencanto


Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


Manuel Bandeira
* Foto de Pahness

Segredo


Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega


David Mourão Ferreira, "No Veio do Cristal"
* Foto de Diana Cretu

Regresso


Quando vieres a minha procura
E perguntares por mim
Lembra-te
Que eu vivi nesta casa e no teu corpo
Apenas temporariamente

Se o vazio da tua Alma
Te atormentar algumas vezes
Pensa
Que as palavras que nao dissemos um ao outro
Subsistem e ferem-nos mortalmente

Se quiseres regressar
E pousar a tua mala de viagem
Digo-te
Que o tempo que passou foi demais
E que as amarras que nos prenderam impediram-nos de navegar

Se o Amor te faltar, nao estranhes:
O Inverno tornou-se Primavera,
Tu mudaste de casa
E eu comprei um vestido novo
* Foto de Humming Girl

EscureSer

Acendo-te um cigarro
antes que a noite venha escurecer as casas
os caminhos
os olhos tristes das gentes
e a boca emudeça de palavras

depois penso
o amor deve ser isto
chegar a um qualquer porto de abrigo
e ler nas próprias mãos
os mapas de outras mãos.


Ana Caeiro, “Segredos da Gaveta”

quinta-feira, novembro 09, 2006

A Sós


Posso ver-te
com a Alma mutilada
e plumas na cabeça
Posso ouvir-te
em batuques distantes
e com dores nos ossos
Posso cheirar-te
com perfumes de ópio
e odores de incenso
Posso sentir-te
com luvas de seda
e mãos de algodão em rama
Preciso amar-te
com fogo nas entranhas
e medo do escuro
Preciso sufocar-te com as minhas razões
e com os meus soluços

Quero vestir-me de mágoa
para ficar a sós contigo


* Foto de Kyrczman

Entre Nós


A claridade que chega do vazio
entre nós
inunda de espaço inútil
as bocas cheias de
verbos, saliva e algas
por dizer

A luz que emana do centro
do teu conhecimento
transforma as múltiplas visões
e cega os olhos translúcidos
de lágrimas e contemplações
por analisar

A escuridão que brota do medo
de deixar a Alma à deriva
alimenta o Oceano negro
que rebenta em ondas de raiva
na praia deserta de conchas
por guardar.


* Foto de Sckamb

terça-feira, novembro 07, 2006

Paisagens do Corpo


Nasces hoje no meu peito
como no primeiro dia da minha existência
depois de saber o teu nome.

Surges do fundo da minha memória profunda e cinzenta,
a tua figura divina de cabelos negros e asas expostas,
tornando-se gigante.

Olho as minhas mãos abertas e vislumbro paisagens do teu corpo,
Fragmentos da tua essência.



(Inspiração: Rebecca Horn, "Bodylandscapes", 2005)


* Foto de Krissteean

Labirinto que se fecha em ti

Fecha a porta
lentamente deixa a luz rasgar os cortinados
e escancarar as janelas dos quartos
dirigir os passos pelos corredores
vazios de sombras e de sentidos

á toa
espalha os restos de mim pelo soalho

a vida é um puzzle que nunca se chega a completar

Acende um cigarro
dispara palavras no eco do silêncio
um grito
um apelo
a raiva dos dias que te acende
o olhar

e não há abrigo que se feche sobre ti
senão a lembrança de mim

Mas eu sou um puzzle
de peças soltas
espalhadas á toa pelo soalho

mas eu sou um labirinto de palavras
uma espiral infinita no sentido do nada

Quando chegas
eu já parti.


Ana Caeiro, “Segredos da Gaveta”

segunda-feira, novembro 06, 2006

Schism


I know the pieces fit cuz I watched them fall away
mildewed and smoldering, fundamental differing,
pure intention juxtaposed will set two lovers souls in motion
disintegrating as it goes testing our communication
the light that fueled our fire then has burned a hole between us so
we cannot see to reach an end crippling our communication.

I know the pieces fit cuz I watched them tumble down
no fault, none to blame it doesn't mean I don't desire to
point the finger, blame the other, watch the temple topple over.
To bring the pieces back together, rediscover communication.

The poetry that comes from the squaring off between,
And the circling is worth it.
Finding beauty in the dissonance.

There was a time that the pieces fit, but I watched them fall away.
Mildewed and smoldering, strangled by our coveting
I've done the the math enough to know the dangers of a second guessing
Doomed to crumble unless we grow, and strengthen our communication

cold silence has a tendency to atrophy any sense of compassion

between supposed lovers
between supposed brothers.

And I know the pieces fit.


Tool, “Lateralus”

sexta-feira, novembro 03, 2006

Sonhei...

Sonhei em silêncio
que te arrancava os olhos
e os punha em mim para ver o mundo
como tu o vês,
com essa frieza.

Sonhei certa vez
que tu e eu eramos feitos
da mesma matéria
e que o silêncio não nos perturbava.

Susa Monteiro

Joelho

Ponho um beijo
demorado
no topo do teu joelho

Desço-te a perna
arrastando
a saliva pelo meio

Onde a língua
segue o trilho
até onde vai o beijo

Não há nada
que disfarcede ti
aquilo que vejo

Em torno um mar
tão revolto
no cume o cimo do tempo

E os lençóis desalinhados
como se fosse
de vento

Volto então
ao teu joelho
entreabrindo-te as pernas

Deixando a boca
faminta
seguir o desejo nelas.



Maria Teresa Horta

Crepúsculo


É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia - q
ue dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.

David Mourão Ferreira


* Foto de Grunta Nz